De volta do Paraguai para sua cidade, Davi chegou cedo no barracão e foi direto para seu escritório, para dar uma geral nos pedidos agendados para a semana: algumas entregas de paletes de Brahma lata para três conveniências nos bairros universitários, outras duas entregas em um mercado na periferia ao sul e uma outra para o Atacadão na saída para Caarapó.
Por volta das oito horas e quinze da manhã, Bruno, o funcionário do administrativo, responsável por coordenar as entregas, chegava no barracão em sua biz vermelha.
De calça jeans Levi’s bem justa nas pernas, camisa xadrez vermelha e azul e um boné bege de caçador de javali, Bruno, como de costume, chegou no escritório do barracão mascando um fumo Stokers wintergreen, com uma garrafa de água vazia no bolso, que usava para cuspir a saliva acumulada pelo fumo que levava na gengiva.
“Moleque porco”, pensava Davi sempre que via seu funcionário metido a cowboy americano. “Além de porco, vive atrasado”.
-- Já separei os pedidos da manhã. Só precisa imprimir e levar para o Osmar. – Disse Davi, de forma ríspida.
-- Opa, bom dia, patrão! Terça-feira braba, hein! – Arrematou Bruno, sorridente.
-- Olha, Bruno, presta atenção dessa vez para não fazer cagada. Quinta-feira passada o Osmar me disse que faltou um palete na Taverna do Diego. Um palete inteiro, Bruno! O Osmar teve que voltar aqui no barracão nove horas da noite, para carregar o trem. E, como estava trancado, me ligou e tive que vir aqui abrir e ajudar a carregar essa joça. Bem no meio do jogo do Palmeiras!
-- Calma, patrão. Eu falei para o Osmar que constavam quatro paletes na ordem de serviço, mas ele cismou que eram três, porque essa sempre era a média de paletes para a Taverna do Diego. Aliás, o Diego disse que essa entrega ele iria pagar em cheque, porque deu uma queda grande nas vendas nas últimas semanas.
-- Sei, sei. Deixa que me viro com o Diego, ele é ponta firme, cliente das antigas. Mas, quando for assim, me manda um zap que eu corto a brisa do Osmar rapidinho. Ele tem essa mania de contar a “média” dos clientes, como se cada conveniência tivesse um número fixo de paletes.
-- Pois é, mas ele também não está tão errado assim. Já percebi que as conveniências universitárias sempre pedem três paletes, enquanto os mercados da periferia pedem um, e os atacados de cinco pra cima. É a ciência dos botecos, patrão.
-- Ciência, é, Bruno? Vou te dizer o que é ciência, e ciência exata: mais uma cagada dessa, e vou descontar a gasolina da volta no seu holerite, seu mascador de fumo safado! – Finalizou Davi, em um misto de brincadeira com fundo de verdade.
Bruno, com “a beiça” cheia de fumo, engoliu seco a brincadeira e foi direto para sua mesa.
O escritório improvisado ficava na lateral do barracão, em um terreno enorme com um espaço onde os caminhões entravam e saíam.
Por volta das nove horas da manhã, o primeiro caminhão chegava na sede, dirigido por Osmar, o mais antigo dos motoristas de Davi.
Baixinho e carrancudo, com o mesmo bigode que mantinha desde os vinte e cinco anos de idade, Osmar, apesar de ter apenas a terceira série do ensino fundamental, se arrogava o direito de agir como o chefe dos motoristas, e se orgulhava por ser o administrador do grupo de WhatsApp da firma.
Para os mais íntimos, era conhecido como Nego, dado a excessiva quantidade de melanina em sua pele.
-- E aí, meu jovem, já acertou a papelada? – Perguntou Osmar para Bruno.
-- Opa, tá na mão, chefia. Bora carregar.
Bruno, apesar de ter sido contratado para o setor administrativo, fazia questão de ajudar no carregamento dos caminhões, em parte para mostrar serviço, mas também porque sentia receio de, com meros vinte e sete anos, dar ordens aos motoristas chucros de mais de quarenta anos de idade.
Então Bruno entrou na empilhadeira e começou a carregar os paletes de Brahma no caminhão de Osmar. Ao todo, foram quatro paletes, cada um com mais de mil latas de cerveja.
Em vinte minutos, o caminhão já estava carregado e pronto para ser entregue ao destinatário. Osmar então partiu rumo à conveniência universitária, junto com outro ajudante, responsável pelo descarregamento dos fardos.
Como estava faltando um ajudante para descarregar, Bruno teve que ir junto com Osmar e Valdir. No caminho, para matar tempo, Osmar perguntou a Bruno como estavam os seus estudos para a faculdade.
-- Está indo, fi. Em outubro faço o Enem. Acho que dessa vez, vai. – Respondeu Bruno, olhando distraidamente pela janela do caminhão.
-- É curso de advocacia que você vai fazer, né? – Perguntou Osmar.
-- Sim, direito na federal. Tem que ser universidade pública, porque não dou conta de pagar particular, não.
-- Vai tirar de letra, tu é um guri bão, inteligente. – Disse Osmar, na tentativa de animar o jovem.
-- Rapaz, então, estou tentando direito porque é onde tem as melhores opções de concurso, mas por mim faria filosofia. Tem um professor de filosofia que conheci na internet, o cara manja demais do negócio. Ele consegue resumir em uma aula os mais de dois mil anos de discussão filosófica, como chegamos até aqui e porque o mundo está como está. – Falou Bruno, se animando por ter chegado neste assunto.
-- Filosofia, Bruno? Porra, mas isso não é curso de filhinho de papai maconheiro? Daqueles que fazem tranças no cabelo e andam feito hippies por aí? – Falou Osmar, enquanto parava no sinal.
-- Sim, e tu nem tem pinta de universitário drogado, fi. – Interveio Valdir.
-- Pois é. Tem mais jeitão de estudante de agronomia. Daqueles que andam de bota, mascam fumo e batem a camionete do pai no cruzamento da Floriano Peixoto, de madrugada. – Disse Osmar, coçando o olho esquerdo e esboçando um sorriso de canto de boca.
-- Ué, fi, mas é um negócio que eu curto. Filosofia não é só ficar viajando na maionese, mas entender o mundo real. – Protestou Bruno, um pouco impaciente.
-- Mundo real? E lá precisa de curso para entender o mundo real? Pergunta para o seu Zé da padaria se ele não entende o mundo real: acordar cedo, trabalhar, pagar as contas, sustentar os filhos e aguentar a patroa enchendo o saco todo dia. – Falou Osmar enquanto estacionava o caminhão em frente à conveniência.
Então os três desceram do caminhão e começaram o descarregamento. Valdir, em cima do caminhão, deslacrou o primeiro palete e, fardo por fardo, foi jogando para Bruno, que os repassava para os funcionários da conveniência.
Em uma hora o trabalho estava feito. No caminho de volta, Osmar aproveitou para comprar um maço de cigarro no boteco do Jurandir, que era um dos poucos comerciantes que ainda aceitavam compras fiadas.
A parada no boteco do Jurandir era um costume sacro para Osmar. Ali ficava ao menos meia hora, matando serviço. Mas como dessa vez Bruno estava junto, não pôde ficar muito tempo, porque Bruno tinha que voltar para o barracão para atender os clientes e lançar as ordens de serviço.
Então Osmar, após matar o cigarro, chamou Bruno e Valdir para subir no caminhão e voltar para o barracão.
Durante o trajeto, Osmar e Valdir foram discutindo a demissão do técnico Luxemburgo do Flamengo, e Bruno, na janela do caminhão, olhando a cidade, meditava vagamente sobre uma aula do seu professor de filosofia da internet, onde este falava sobre a liberdade de espírito, a chama indomável do amor à verdade e a mediocridade e esterilidade do ambiente social brasileiro. E o intervalo do almoço sequer tinha chegado. Eram onze horas da manhã de uma terça-feira. Ainda tinha chão até o sábado à noite, quando Bruno poderia ouvir seu professor filosofando ao vivo.
Continua…