Caminhando com Dom Quixote
Quem conhece a história de Dom Quixote de La Mancha sabe que ele é o arquétipo do homem idealista, utópico, que, em meio a um mundão trevoso, cínico e descrente, empunha as armas do amor à Justiça e à Verdade, encarnando em si valores superiores e eternos.
Conhecemos bem a ladainha em voga em nossa sociedade: o tempo dos ideais nobres é a adolescência. Na idade adulta, tudo o que conta é a correria pelo dinheiro, pelo sustento da casa, dos filhos, o trabalho cansativo e na melhor das hipóteses as férias na praia no final do ano.
Então a imagem depressiva que muitos constroem sobre a vida adulta é essa vida cínica, prática, imanente, sem esperança e descrente em qualquer ambição espiritual superior.
Porra, mas desde quando a vida prática seria um empecilho à vida espiritual? Por que a vida prática teria que necessariamente sufocar a vida do espírito? Quem disse que não dá para articular as duas coisas?
Foi sobre essa tensão que Miguel de Cervantes quis escrever quando criou nosso herói Dom Quixote.
Quixote, um aldeão aposentado, após ler algumas dezenas de contos sobre cavalaria, decide se tornar também ele um cavaleiro, um defensor perpétuo das damas, dos órfãos e das viúvas, montando em um cavalo, armado de escudo e espada, e saindo pelas estradas da Espanha atrás de aventuras e feitos extraordinários.
Ora, é claro que no começo da jornada, todas as pessoas o tomaram por um louco varrido, um demente inconsequente que deveria ser tratado por médicos, por ter perdido completamente o juízo.
Mas, no decorrer da história, o que era a princípio uma loucura, foi aos poucos se tornando realidade, porque Dom Quixote começou de fato a salvar pessoas em perigo, a enfrentar vilões e a realizar grandes feitos heróicos.
O seu triunfo então não se limita apenas às damas salvas e aos vilões derrotados, mas ao próprio mundo cínico que o cercava. Ao mundo imanentista e desesperançoso, que nos diz que somente o que afeta nossos sentidos é o que deve ser levado em conta.
Dom Quixote triunfa, afinal, sobre os três inimigos da alma: o mundo, o diabo e a carne.
E neste nosso mundão cyberpunk, em pleno século XXI, onde predominam o niilismo, o hedonismo e o culto à Mammon, há milhares de Dom Quixotes espalhados por aí, empreendendo trabalhos apostólicos nobres e absurdos aos olhos do mundo.
Eu mesmo conheci um, aqui de Campo Grande. Um coronel aposentado do Exército, que poderia estar viajando com a esposa pela Europa, curtindo tranquilamente sua aposentadoria, mas que, por amor à Cristo e seu Evangelho, decidiu empreender uma obra apostólica grandiosíssima: pregar o Evangelho aos presos, aos condenados por crimes hediondos.
Sequer boa parte do clero botou fé neste empreendimento. Da sociedade isso já era esperado. E assim, mesmo sem apoio nenhum, o coronel apóstolo meteu a mão na massa e entrou nos presídios para pregar Cristo e a doutrina da Sua Igreja.
“Não vim para trazer a paz, mas a espada”. Dom Quixote é, em última instância, a imagem de um aspecto do próprio Cristo. Porque foi Cristo quem primeiro venceu o mundo e seu cinismo. Foi Nosso Senhor quem primeiro acreditou nos homens decaídos e se sacrificou por eles na cruz.
E é partindo da cruz, do calvário, daquela aparente derrota infame, que se acendeu no mundo a chama de esperança na redenção e na vida eterna.
Assim, cada apóstolo atual, cada missionário cyberpunk do século XXI, carrega em si uma chama quixotesca, idealizada, que tem seu fundamento, sua base, na própria redenção da cruz e Ressurreição do Senhor, eterna luz e esperança dos homens.